Seu corpo caía pesadamente, com um vento gélido batendo às costas. Seu grito de pavor era incessante, constante e estranhamente pequeno. Descia dos céus, e sua voz se perdia em meio a centenas de outras de homens, mulheres e crianças. Ainda caindo, se aproximando perigosamente do chão, Calíope colocou as mãos em frente ao rosto, esperando pelo encontro certamente mortal. Ficou assim por alguns segundos, depois sentindo que estava firmemente de pé, apenas em uma posição embaraçosa. Afastou devagar os braços, abrindo os olhos e vendo a situação.
Era noite e possuía alguma coisa estranha com a lua, que parecia estar se conectando com as nuvens negras que, mesmo que inutilmente, tentavam cobri-la e escondê-la do mundo uma vez mais. A iluminação não vinha até a rua pelas janelas das casas, mas sim das próprias moradias. Mulheres, crianças e alguns homens corriam, tentando fugir. Outra parte da população masculina estava armada, escudos, lanças, espadas e arcos faziam parte do armamento. O chão de pedra estava surpreendente e anormalmente sujo, com cinzas espalhadas por todos os lados. Vidrou por, poucos segundos, seus olhos ao chão, antes de ver algo assustadoramente enorme bradando uma espada.
Seus movimentos eram certeiros e, mesmo para leigos sobre as artes mortais, eram belamente executados, como uma dança da morte, dignos de Aquiles. Decepava cabeças e corpos ao meio que, mesmo antes de chegarem ao chão, se tornavam pó, deixando suas armas e armaduras caírem com um baque surdo no chão, espalhando os restos de seus antigos usuários. Quando todos haviam caído, a grande sombra armada se virou, encarando-a. Seus olhos eram de um azul brilhante, enquanto o corpo todo estava recoberto
Seu terror foi bastante aumentado instantaneamente, quando havia fitado os olhos da sombra. Eles pareciam olhar no fundo de sua alma, congelando suas veias e paralisando seus movimentos. Calíope só sabia ficar encarando-o, enquanto ele, em passos lentos e pesados, marcados por grave um som metálico, ia até sua direção. A espada voltada para o chão enquanto sua mão livre se erguia exatamente em direção à cabeça da Musa. A poucos metros, ela se virou bruscamente, vendo no chão e ao vento várias e várias penas brancas, brilhantes.
Um farfalhar de asas se fez, e ela se perdeu tempo suficiente para que ele a alcançasse. Seu desespero se fez intenso, enquanto um grito agudo era solto. Ela se virou novamente para trás, vendo que a mão da criatura não a segurava, mas sim uma mulher atrás de si. Só se podiam ver seus olhos, tendo o resto da cabeça cobertos pela enorme mão. Alguns fios de cabelo ressaltavam por entre os dedos, enquanto um grito de dor e agonia era abafado pela pesada mão. Em uma questão de segundos, se escutou um enorme “CRACK!”, e se viu sangue jorrando, pingando por entre os dedos do assassino. O corpo caiu pesado no chão, com uma agora indefinível cabeça espalhada, pintando a rua de vermelho no mar cinza.
-Incrível, não é verdade? – Era uma voz calma, limpa e consideravelmente bela. Calíope olhou para o lado, espantada. O que ela supunha ser um sonho (mais provavelmente um pesadelo), ficava cada vez mais difícil de compreender. Era um homem alto, tendo uma pele alva que fazia contraste aos utensílios negros. Uma foice estava depositada em seu ombro, enquanto asas balançavam levemente em direção ao chão. Seus olhos eram totalmente negros, assim como seu comprido cabelo. Possuía um físico belíssimo, podendo ser invejado pela maioria (se não todos) os homens que varriam a Grécia.
Ela ficou estática, olhando e analisando-o até que reuniu forças para falar algo.
-Você é...
-Tânatos? Oh, não, por favor. Mesmo sendo um Deus eu não teria permissão para entrar “aqui”. – Ele interrompeu, abanando a mão em um sinal de desdém, como se ela tivesse falado algo estúpido. – Sou apenas um avatar. Sou uma imagem, criada por esse espelho, para explicar e demonstrar para os raros visitantes o que é.
-Então... o que é isso tudo? Onde eu estou? – Ela perguntou, demonstrando um tom mais confuso do que normalmente seria. Sua voz era mais doce e limpa do que a dele, sendo quase uma música. Ele respirou fundo e fechou os olhos, esboçando um sorriso. Parecia sentir prazer ao escutar a mulher falar.
-“Isto” é a tua morte. – Disse, olhando para ela, como se já esperasse pela pergunta, respondendo com certa ironia. – Hoje é o dia
-Mas isso é impos-
-Sssshhhh – Fez ele, interrompendo-a enquanto colocava o dedo na boca e, em um aceno com a cabeça, falou. – Vai perder o espetáculo.
Ela franziu o cenho, e lentamente se virou. Uma trilha de novos corpos, agora esmagados ou jogados aos cantos era vista. Os gritos agora eram inexistentes, e ela apenas conseguiu enxergar um baque surdo de outro ataque falho, feito por... ela mesma! Arregalou os olhos e seu espanto a deixou sem palavras. Deu um passo à frente, erguendo a mão. Viu ele se virando e subitamente parando, com as chamas azuis que eram seus olhos se voltando para ela. Viu um sorriso brotando em sua face, enquanto ela lentamente levantava as mãos em direção à sombra ambulante. Deu um passo à frente e, enquanto lágrimas escorriam pelo seu rosto, Levou o rosto até o lado do vulto.
A Calíope acompanhada de Thanatos nada havia entendido, até que um grito gutural se fez e, com um clarão, tudo desapareceu. Ela agora se via apenas acompanhada do avatar de Tânatos, se perguntando o que diachos havia acontecido. Como que lendo os pensamentos dela, ele falou com a usual voz calma.
-Ah, não se engane, minha querida. Você realmente morreu ali. Talvez não tenha visto como, mas você morreu. Você estava morta no momento em que ele se virou para lhe encarar.
-Mas, como?! Como eu estava morta se dei um passo à frente, chorei e, sabe-se lá o porquê, falei com ele?! E o que é isso nas minhas costas? Por que essas asas e por que as penas não param de cair?! – Era um tom desesperado, implorando por respostas.
-Como eu não posso lhe dizer, mas vou lhe explicar melhor o que foi isso tudo antes de nosso tempo acabar. Esse espelho que você viu, é aquele que mostra aos mortais quando morrerão. E isso é uma coisa imutável, pois ele pertence àquelas que controlam o próprio destino de humanos e Deuses, e o que é mostrado aqui está traçado em seu destino. Há de acontecer, independente do que tente fazer. Isso que está em suas costas é a asa que mostra o tempo que ainda lhe resta nessa dimensão. As penas são o que demonstram isso, sendo que, quando a última delas cair, você sairá daqui, voltando ao seu corpo. Esse espelho em especial foi muito procurado, visto que mostra onde e como sua morte acontecerá. Todos querem “me” evitar, então ele é guardado junto de todos os outros inúmeros espelhos, cada um mostrando uma parte do que acontecerá em sua vida, junto ao santuário das Irmãs do Destino. Visto isso, só pode deduzir que...
-... o espelho foi roubado. – Ela completou a frase, de forma meio receosa.
-Exatamente. Não acho que deva confiar no homem que lhe salvou, el... – Não conseguiu terminar a frase, sendo interrompido por um quase ataque verbal, repleto de desconfiança e indagações mudas, mas que podiam ser entendidas por qualquer pessoa que ouvisse tal fala.
-Como você sabe sobre Hidrael? – Fez um pequeno tempo de silêncio, até o homem alado responder.
-Acho que já disse isso... Eu sou uma imagem da morte criada a partir de você, da sua mente. Não é anormal eu saber de todos os lugares em que tu esteve ou que quer estar. As pessoas que conheceu, o que achava delas e os sentimentos que guardava por elas. Em poucas palavras, sou uma versão “viva” da tua mente. – Ela olhou desconfiada, incontáveis e diversificados pensamentos rodando por sua mente, e isso transparecia em seu rosto. Ele abriu um sorriso estranhamente bizarro, falando novamente de forma consideravelmente psicótica. Arregalou um pouco os olhos, virando levemente a cabeça. – Estranho, não é verdade?
-Não acredito nas tuas palavras.
-Não? Mesmo eu podendo lhe der detalhes sórdidos sobre suas viagens, assim como certos acontecimentos desagradáveis? – Ela estacou, seus olhos mostravam que sua mente estava viajando para um passado que tentava esquecer. – Ah, então você se lembra, afinal.
-Me lembrar do que? Não tenho idéia do que estás falando. – Dizia ela de forma mais acanhada do que antes, como quem tenta fugir do assunto enquanto virava o rosto para o outro lado. Ele fez um muxoxo, andando até ela em um passo largo e depositando sua mão em seu ombro.
-Mas que feio, mentindo para si mesma! Tu te lembras, sim. Da festa animada, do prazer indesejado e súplica por morrer, a vingança que lhe foi negada...
-Não preciso mais ouvir nada sobre suas mentiras! Saia daqui, saia de perto de mim!
-Não diga tal cois... – Ele parou a fala, erguendo a mão e olhando para cima. Seu sorriso se desfez e, enquanto falava, virava seu rosto para ela novamente, com calma. – Parece que nosso tempo acabou... todas suas penas já caíram. Até nunca mais, Musa. Este lugar vai ficar solitário demais, novamente...
Mal teve tempo de Tânatos terminar sua fala e Calíope sentiu um puxão em sua barriga e, abruptamente, foi puxada para algum lugar que não sabia dizer qual era. O deus da morte olhava para ela, enquanto ele e todas as penas viravam pó. O material negro começou a se espalhar, tomando todos os locais para onde a mulher poderia olhar. Sua voz não saía e seu corpo não obedecia, até que abriu os olhos e a fala finalmente voltou. Voltou a si tomando um fôlego, ficando sentada. O chão estava repleto de cacos de vidro, cacos do... espelho!
Sentiu uma ardência na ponta dos dedos de uma das mãos, olhando com curiosidade para elas. O sangue pintava a ponta dedo indicador da mão direita de vermelho, chamando sua atenção. Começou a aproximá-lo dos olhos quando foi acordada do transe pela voz de Hidrael. O homem estava acocorado ao seu lado, com uma das mãos em suas costas e a outra apoiada no joelho. Estava com um olhar sério, reprovador e perguntou com uma voz que não havia apresentado na ida até a sua casa.
-O que você estava fazendo?
Ela o olhou com o rosto incrédulo, enquanto tentava formular uma boa resposta em sua cabeça.
-Eu... – Sua voz foi perdendo lugar, dando espaço para um silêncio constrangedor. Ficaram alguns segundos assim, até que ele se levantou, lançando-lhe uma bufada enquanto caminhava até a porta. Estacou debaixo dela e, fitando-a com o canto do olho, perguntou com uma voz mais calorosa e compreensiva que antes.
-Você está bem?
-Eu... – Tornou a falar ela, depois de um tempo. Começou a brotar um sorriso amarelado em seu rosto, até que retomou a fala. – Estou bem, sim.
-Que bom, então já pode arrumar essa bagunça. – Disse em tom mais duro novamente, antes de voltar a andar e sair do quarto. Calíope abaixou o rosto em direção às mãos, se perdendo em um choro mudo. As lágrimas se misturavam com o sangue recente e caíam até sua túnica, sujando de pequenos pingos avermelhados.
Hidrael andou até a rua, arrancando um pedaço do tecido de sua roupa e limpando o filete de sangue que escorria de seu cotovelo até o pulso. Pressionou o pedaço de pano no ferimento aberto pelo vidro do espelho quebrado. Perguntava-se o sentido de tantos gritos, assim como se perguntava do por que Calíope tocava o vidro com o dedo durante a provável alucinação. Não havia pensado em nada quando deu a cotovelada, apenas achou que era o certo ao ver a palidez da mulher.
-Bruxa estúpida. – Sussurrou para si mesmo antes de jogar o pano em um canto qualquer e recolocando suas luvas de couro, pegando o martelo do chão e se encaminhando novamente para a forja.
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Admito, capítulo mais fraco até agora D: não adicionou em nada na história *cof cof mentira cof cof*. Taquem pedras, mas eu gostei de escrever esse capítulo mais que os outros u_u' então que se exploda, hunf ÒwÓ/. Quando terminar o quarto capítulo, posto ele aqui.
See ya later ^^'